Rosa. Um sábio chinês das geraes?

 O I Ching ou livro das Mutações é considerado um clássico da cultura chinesa. Sua origem remonta a cânticos transmitidos pela tradição oral por várias gerações, como a "síntese" de seu conhecimento e valores. Em 500 a.C. ele já era chamado de "milenar". Então, não é nenhum exagero dizer que ele tenha pelo menos 3 mil anos. É considerado como a base das duas principais filosofias chinesas, o taoísmo e o confucionismo.


Basicamente, são 8 conjuntos de 3 linhas, sejam elas inteiras ou separadas, firmes ou maleáveis, que, combinados entre si, geram 64 "situações arquetípicas". Ex.: Céu sobre Céu, é o hexagrama do "Criativo". Terra sobre terra, é o hexagrama do "Receptivo". No Criativo, a energia yang, do céu, do masculino; no Receptivo, a energia yin, da terra, do feminino.

Mais do que apenas um "instrumento divinatório", o I Ching permite meditar e refletir sobre estas interações entre os elementos. No Hexagrama 6, "Conflito", embaixo está a água ou o abismal. Acima, está o céu. Divergentes, um tende a descer e o outro a subir. O atributo do céu ou criativo, é a força, o do abismal, é o perigo, a astúcia. Daí se diz, quando a astúcia tem a força diante de si há conflito. Pela imagem dos trigramas, pode-se dizer que uma fraqueza interna, seja por medo ou insegurança, unida a uma atitude firme e obstinada,  a consequência será o conflito. Já no Hexagrama 11, "Paz", temos a força interna (embaixo) e a receptividade, ou gentileza, externa (acima).

"Entender estas relações" faz que, com o tempo, você não precise mais do livro em si, mas aprenda a raciocinar em cima dos atributos de cada trigrama e suas possíveis combinações.

Claro que para nós, de uma outra cultura, ocidental, judaíco-cristã, pode parecer um tanto enigmático a princípio. Então, recomendo começar por "outro caminho", por um pequeno livrinho chamado o Tao-te-King. São apenas 81 poemas, que contém a base destas relações entre homem, céu e terra.

Em um destes poemas, alerta: "o forte não morre de causas naturais". Daí, fiquei sem entender nada. Como assim, sempre me disseram que a gente deve ser "forte"? A diferença é que no pensamento oriental "o forte" não é necessariamente algo bom. Ou seja, "o forte" é aquele que resiste e tenta impor a sua vontade aos outros, pela força. Daí o Tao assegurar que isso não terminará bem. Segue um trecho do poema 76:

"Quando as pessoas nascem são flexíveis,

e quando morrem, são rígidas.

Quando as árvores nascem são maleáveis,

e quando morrem, são quebradiças.

A rigidez é, pois, companheira da morte,

a flexibilidade, companheira da vida".

Você pode até não concordar, mas meus joelhos e articulações, depois dos 50 anos de idade, entendem direitinho. Gostaria de ainda ter a flexibilidade que tinha na juventude.

Já conhecendo alguma coisa da filosofia oriental, me surpreendi ao ler, talvez pela primeira vez, o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e encontrar semelhanças em obras tão distantes no tempo e no espaço. 

Assim como o Tao dizia que se você conhecer a sua aldeia, você conhecerá o mundo, Rosa observava uma pequena pedra ou outro objeto qualquer da natureza e dali intuia uma "lei universal". O yin e o yang. A unidade e o todo. Lembro-me de escrever isso em uma carta a uma amiga (isso no tempo em que a gente ainda escrevia cartas).

Passados outros tantos anos, finalmente pude entender a razão deste meu "estranhamento". Encontrei um livro, chamado "JGR: Metafísica do Grande Sertão", de Francis Utéza, Ed. USP (1994), que mostrava as influências filosóficas ou religiosas por trás da obra de Rosa. E dentre elas, estava o taoísmo.

Bingo. Pelo menos uma década antes eu tinha "percebido" as "parecenças", (sendo aqui mais mineiro do que oriental). Me faltava na época embasamento teórico para chegar racionalmente a tal conclusão. Mas, pelo sentimento, ou intuição, eu já sabia. Só não conseguiria explicar.

Francis Utéza, explica a partir do próprio título do livro: "Grande" significaria "o maior, o que vem do alto", "Sertão", o seco, inóspito, o yang. Os 2 pontos, indicando uma contraposição. E por fim, "Veredas", o úmido, o verdejante, o yin, onde brota a vida. "Veredas" significa ainda "senda", caminho estreito (o que já lança outras interpretações mais místicas). Mas, pesquisando as correspondências de Rosa e seus tradutores para outros idiomas, eis que Utéza afirma que na versão  do livro em alemão, está apenas "Grande Ser Tao: Veredas". Teria sido um pedido do próprio Rosa.

"O que eu pensei: ...rio Urucúia é o meu rio- sempre querendo fugir, às voltas, do sertão, quando e quando; mas ele vira e recai claro no São Francisco"... (trecho de GS:V)

Mas, voltando à fonte original, o I Ching, o Hexagrama 48 O Poço (Ching), diz o seguinte em seu julgamento:

"O POÇO. Pode-se mudar uma cidade,

mas não se pode mudar um poço.

Este não diminui nem aumenta.

Eles vão e vêm, recolhendo do poço

Quando se chega próximo ao nível da água, mas a corda não vai até o fundo ou o balde se quebra, isso traz infortúnio.

O poço é a fonte inesgotável, a centelha divina presente no interior da natureza humana. Grandes obras como o I Ching, o Tao te King ou o Grande Sertão são poços também. Sabedoria? Dependerá do leitor. Podemos recolher a água superficial ou a mais profunda, conforme nosso momento e nossa sede. Eles estarão lá, imutáveis, disponíveis. Nós que mudamos, com o tempo. Cada vez que retornamos a eles, aprendemos mais um pouco. Pelo menos assim tem sido comigo. Recomendo experimentar.


 

Comentários

  1. Excelente reflexão sobre Guimarães Rosa e a sabedoria tradicional das culturas orientais. Quando, há alguns anos, li o livro de Francis Utéza, também fiquei surpreso com as descobertas, mas nada se compara às leituras que a gente faz da literatura do próprio Rosa. É um desafio sedutor e enigmático, na primeira leitura ou nas leituras seguintes, porque são textos que pedem várias leituras, sucessivas e complementares.

    Há pouco mais de um ano entrevistei um pesquisador estrangeiro, Piers Armstrong, australiano, brasilianista, professor da Universidade da Califórnia, que abordou alguns desses enigmas esotéricos cifrados na literatura de Rosa e também em Jorge Amado. Segundo o professor Piers, João e Jorge são chaves privilegiadas para entender o Brasil e os brasileiros. Vou enviar para você o link da entrevista, que foi publicada em uma revista da UFMG. Leia e depois me diga.

    Parabéns de novo pelo blog e pelas questões que você convida à reflexão.

    José Antônio Orlando.

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